Na infância, passava as férias na casa de meus avós em São João da Boa Vista. Da sacada de meu quarto, eu observava carroças, bicicletas, homens a cavalo, alguns automóveis. Nada muito interessante, a não ser Niquita. Quando ela passava, eu ganhava o dia. Niquita era uma preta velha, miserável, louca e carismática. Moradora de rua, vivia acompanhada de cachorros vira-latas. Vez por outra, desfilava em andrajos bem no meio da avenida, acompanhada dos cães, muito parecidos com ela: esqueléticos, sarnentos, esfomeados, desenganados da vida. Disparava impropérios, aos gritos, em seu itinerário para lugar nenhum, rodeada da matilha, todos andando juntos, sem rumo definido. Niquita. discursava ininterruptamente, sem que ninguém a levasse a sério. Certa manhã, passou irada, gritando todos os palavrões existentes em língua portuguesa. Até que Niquita morreu. Foi um choque.
Assim é a história de muitas mulheres. Sofrimentos, injustiças, reclamações jamais proferidas ou ouvidas. Sem amparo, sem ajuda, sem respeito, sem amor, sem dinheiro. Pena que não tenham todas saído para a rua, gritando impropérios contra a desigualdade social, racial, sentimental, estrutural. Embora as mulheres tenham conseguido avançar bastante na conquista de seus direitos, muitas ainda são espancadas dentro da própria casa, estupradas por pais, padrastos, irmãos ou tios, assassinadas por maridos, ex-maridos, ex-namorados, desrespeitadas no local de trabalho, humilhadas dentro e fora da família.
Luiza Nagib Eluf é advogada e Ex-Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.