O bairro da Lapa participa fortemente do processo histórico de industrialização da cidade de São Paulo. A Lapa era um bairro industrial (como outros bairros da cidade: Brás, Mooca, Ipiranga, Belém, Tatuapé, São Miguel Paulista…). E São Paulo, a partir da 1ª República, torna-se o centro da modernidade industrial-capitalista do país, desbancando o Rio de Janeiro, pois incorpora pouco a pouco um tipo de produção com características técnicas de maquinário propício à produção em larga escala.
Isso foi possível, entre outras razões, pela enorme riqueza gerada pela monocultura do café, que liberou capital excedente para o investimento em máquinas, equipamentos e instalações. Indiretamente, a Lapa tem, portanto, uma importância histórica na própria industrialização do país. É interessante ver esse microcosmo local (um bairro) em conexão com um processo espacial mais amplo (um Estado, uma nação), num determinado tempo da história (1889-1930) para nos darmos conta de objetos e pedaços dessa história que estão guardados, entranhados no solo, e que desaparecem com o passar dos anos, de modo que hoje, no início do Século XXI, estão mesmo irreconhecíveis. Quem diria que os prédios de moradia de alta renda que hoje pipocam no local encobrem uma realidade tão diferente daquela de um século atrás? O mesmo processo ocorre com aqueles outros bairros citados da cidade.
Em suma, as classes sociais que habitaram o bairro naqueles anos são bem diferentes das classes sociais que habitam hoje o mesmo bairro. O corte geracional corresponde também a um corte social: os avós e bisavós dos jovens adultos que hoje adquirem imóveis no bairro são diferentes dos avós e bisavós daqueles que antes moravam nas casas que foram demolidas e que deram lugar aos prédios onde hoje moram os primeiros. Aqueles foram deslocados para outros cantos da cidade (só para dar um exemplo entre tantos: os moradores da casa da Rua Marco Aurélio entre as ruas Tito e Camilo hoje habitam o bairro de Pirituba, na Zona Norte).
A herança familiar transferiu-se de lugar, geograficamente falando. Os netos e bisnetos de uns não se comunicam, socialmente falando, com os netos e bisnetos de outros. Os que persistem no mesmo lugar têm de criar novos laços (o que não é um trabalho automático; leva tempo), ou então manter essa incomunicabilidade, na forma de uma indiferença “natural” – natural porque não há nada, empiricamente falando, que pudesse aproximá-los, uma vez que se trata de comunidades diferentes. Até mesmo os hábitos das classes são diferentes: enquanto os do primeiro grupo entram e saem de casa (dos prédios) de carro, os do segundo grupo costumam circular a pé, e assim o encontro de uns e outros torna-se menos provável (não se encontram no ponto de ônibus, por exemplo, ou nas plataformas de trem). Talvez as feiras-livres ou os supermercados sejam os momentos de tais encontros, forçados pela necessidade, entre essas duas classes de habitantes do bairro, mas mesmo isso está mudando com a nova onda de pedidos de comida pelo telefone, alimentados pelo exército de entregadores-motociclistas ou entregadores-de patinete-eletrônico, eliminando desse modo a exigência de sair de casa. É todo um ciclo de vida que pode transcorrer, cada vez mais, intramuros.
Dizemos que tais características sociais, observadas ao longo do tempo, indicam o estreitamento do espaço público, isto é, o local não representa mais um espaço de convivência e experiência entre as pessoas que habitam esse mesmo espaço físico. Esse último, preenchido quantitativamente por mais habitantes do que no passado (uma vez que os prédios de apartamentos permitem um adensamento populacional maior comparativamente às casas unifamiliares predominantes nas décadas passadas), não indica qualitativamente um espaço social de fato, isto é, mais homogêneo e integrado; ao contrário, espaço físico e espaço social podem encobrir uma certa tensão, onde uns (os recém-chegados) vêem os segundos (os antigos moradores) como uma população em extinção, e portanto em transição para uma nova característica onde, desvencilhados os incômodos do passado (pois o passado lembra uma outra época de hábitos, costumes e valores que atesta a possibilidade de se viver diferentemente) possam ver-se a si mesmos (os que ficam) como falando a mesma linguagem.
A Vila Romana, região da Lapa, está passando por essa transição. Trata-se de um outro espaço público que está sendo gestado, com características próximas do modo de vida mais de acordo com a chamada “vida moderna” (seja lá o que isso signifique, pois dessa se fala desde há já muito tempo!). Os folhetos de lançamento imobiliário são pródigos nessa narrativa de construção de uma nova autoimagem para a região: eles têm uma definição bem particular do que seja “modernidade”, dissociando essa última do que era então um traço essencial dela: o urbano como lócus do comum.
A exposição Onde a Casa Mora?, concebida por Janice Piero na Casa Amarela (rua Camilo n° 955), assim como o tour pelo patrimônio industrial desaparecido do bairro, no bojo das atividades da Jornada do Patrimônio 2019 – Memória Paulistana, nos dias 17 e 18 de agosto, visam ambos justamente chamar a atenção para esse processo sociológico de fundo que ocorre sob os nossos olhos, aqui e agora.